segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

Trem da Morte

Estavam todos mortos. O trem estava aniquilado, pelos corredores que ainda restavam parcialmente inteiros, por assim dizer, o que se via eram corpos sobrepostos sobre outros corpos em meio a muito ferro contorcido e sangue.

Por toda parte o cheiro da morte terminava por sufocar os moribundos que insistiam em querer sobreviver respirando aquele horror. Apenas meia luz era tolerada, e ainda assim, de modo indigno vindo da destruição das paredes e janelas da velha máquina.

Quantos segredos guardados no mais secreto compartimento cerebral mal revelados a si mesmo teriam sido finalmente sepultados no momento da explosão? Palavras não ditas presas na garganta para sempre. Urgências infinitamente adiadas. Sonhos eternizados. Seres que desapareceriam com o tempo e não seriam lembrados como heróis; empresários, donas de casa, políticos, pessoas e passados diferentes, a ironia do mesmo destino; morrer pelo acaso. Defeito elétrico, um cabo arrebentado, talvez a falta de manutenção ou desleixo de alguém que queria chegar logo em casa tomar um bom banho e ir para a cama cedo. Alguma coisa importava agora? Tudo havia acabado sem que alguém ao menos soubesse que havia começado, tão banal quanto a fumaça que se espalhava dos destroços.

Tão fácil se perder.

domingo, 7 de dezembro de 2008

Pela fresta da Janela

Ele a via pelo visor da máquina filmadora, e ela no outro lado da rua, tinha plena consciência dos olhos cor de tempestade pousados sobre si, talvez por isso dançava como uma criança que se mostra a um adulto.

O vento rodopiava em sua saia ¾, enquanto o cabelo desordenado brincava em seu arteiro rosto cor de chocolate atrapalhando um pouco a visão.

Ele poderia passar horas ali filmando-a, tragando seus olhos, sorrindo seu sorriso, movendo-se na dança de seus longos cabelos negros. A dança da estranha, que pela pequena janela lhe fazia sentir conhecida de anos a fio.

Menina-mulher, ao menos naquele momento, por aquela pequena fresta poderia, vive-la. E como queria não precisar de nenhum artifício para isso. Ele sabia que em algum momento a bateria iria acabar, o vento cessaria, ela pegaria suas sandálias e partiria sem olhar para trás procurando um novo redemoinho que a fizesse dançar, sem a ciência que deixava nele um amor dilatado que pulsava enchendo quatro corações e meio.

segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

Mais um dia na Capital

A confortável fumacinha que sai da caneca anuncia um novo dia começando. Pela fresta da cortina vejo um pedaço de céu azul, um dia de verão na capital e mais um dia de trabalho para quem precisa. Sorvendo goles de chá, planejo o dia, as cobertas tornam o processo de sair da cama muito difícil e lento, teimo em continuar ali só por mais cinco minutinhos, os quais poderiam ser infinitos.

Ouço os carros passando, barulho de fábricas que começaram seus expedientes, transeuntes conversando, de longe o sinal do colégio toca. Uma onda preguiçosa me invade, me alongo, mexo braços, pernas, me estico, ensaio levantar. Olho pro lado ele ainda está dormindo, talvez sonhando. A ingenuidade matinal me domina, talvez mais dez minutos não façam tanta diferença assim, viro pro lado o abraço, durmo novamente.

Estou indo por uma estrada marrom, nenhum sinal de civilização. Ao meu lado estão duas garotas, não devem ter mais de 18 anos, estão segurando uma bacia não consigo ver o que há dentro. Avisto uma casinha totalmente abandonada, caindo aos pedaços, muito mato por toda parte. Continuo andando. Elas sorriem para mim e continua tocando aquela velha canção....

Abro os olhos, tem alguma coisa errada, o dia está mais claro do que deveria estar! Perdi a hora, encosto na caneca de chá, ela está gelada, levanto correndo, mas já não há como remediar. Como diz o poeta, o tempo não pára! Sem muito tempo pra pensar corro pro banho sorrindo, afinal têm coisas que valem a pena!

quarta-feira, 19 de novembro de 2008

Eles

Volta e meia sou invadida pelos meus próprios “eus-monstros”. Eles são feios, maus, rosnam, têm dentes grandes e afiados, se alimentam de mim e nunca estão satisfeitos. Ás vezes eu exalo um certo mau hálito vindo deles.

Quando posso tento os acalmar, assim como quem se aproxima lentamente de um cão raivoso. De vez em quando funciona, se acalmam, outras vezes me devoram um pouco do coração, fígado e estômago.

Eles crescem e se multiplicam de forma desordenada, tenho a impressão que um dia eles tomarão conta de todo o espaço ocupado pelas minhas vísceras. É bem possível! Talvez aí, quando eu estiver completamente vazia e já não tiverem do que se alimentar, eles finalmente me deixem em paz – eu e minha carcaça - ou quem sabe procurem abrigo em outro alguém, ou ainda, simplesmente se aquietem e sejam meus companheiros de viagem até o fim. Não sei!

Quiçá um dia eu comece a comê-los! Também não sei.

segunda-feira, 10 de novembro de 2008

O palco

O palco era grande, atravancado de porcarias que iam do chão até o teto. Mercadorias desordenadamente colocadas em pilhas, fileiras, unidades sobre unidades e ao lado de outras tantas unidades. Placas amarelas de preço anunciavam imperdíveis promoções, sabão em pó, em pedra, sabonete, arroz, feijão, banana, produtos de todos os gêneros armazenados no mesmo local. Corredores apertados, mau iluminado, cheirando a urina de rato, frutas passadas e suor humano. As moscas pousando sem pressa sobre lingüiças, bacon e torresmo expostos em desmazelo sobre o balcão do açougue. Características comuns de mercados populares. “Aproveite a oferta freguesia”, anunciava da caixa de som uma voz meio rouca e cansada, entre um pagodinho e outro.

De que serve o palco senão para atores representarem seus papeis? Os atores eram homens, mulheres e crianças, em seus carrinhos até mesmo os nenéns não perdiam a oportunidade de participar do espetáculo fazendo alguma algazarra (às vezes engraçadinhas, às vezes irritantes). Papeis e intenções se repetiam diariamente, as falas se restringiam a “obrigada”, “por favor”, “licença”, raramente improvisações eram necessárias, participações rápidas. A menina do caixa sempre sorridente com seu avental azul fazia acenos com a cabeça “Obrigada, volte sempre

Todo dia, dia de interpretação, cortinas abertas de segunda a segunda. Um palco repleto de novos e velhos talentos, porém não havia tempo nem espaço para apenas assistir, muito menos ensaiar, a vida pulsavam em cada canto, até mesmo o ar ali, possuía uma densidade diferente. Todos sem exceção, intérpretes de um palco real, de uma vida que meramente acontecia.

terça-feira, 4 de novembro de 2008

Parole...

Desci do carro e a primeira onda de vento gelado me invadiu eriçando meus pêlos do braço. Uma noite silenciosa demais para o meu espírito que gritava, mas mesmo assim uma bonita noite esbranquiçada.

Respirei fundo e comecei a andar, mas tão devagar que quem me olhasse, mesmo de longe, veria que eu não queria chegar ao lugar de objetivo. E não queria mesmo, como não queria...

Minha alma ansiava por diversão, por algo que a fizesse esquecer ao menos por aquela noite tudo o que a fazia sofrer.

Andava sem me importar com o horário, sem me importar por estar sozinha, queria ser encontrada, para cada carro que passava eu olhava esperando encontrar algum rosto amigo. O caminho parecia curto demais.

O vento continuava a soprar, eu cada vez me afundando mais em pensamentos, o desejo aumentando mais e mais, agora misturado com um pouco do desespero ao constatar que faltavam poucos metros e ninguém ainda tinha me encontrado. Nenhum amigo para dizer: “que bom te encontrar, estou precisando conversar, talvez somente um pouco de vinho ou quem sabe querendo um simples abraço”.

Os amigos de verdade estavam há certo tempo escassos. Fechada em minha concha poucos me conheciam mesmo, tinha virado algum tipo de profundeza. Os passos agora eram ainda mais vagarosos e pesados, a esperança de ser encontrada por alguém quase não deixava mais vestígios.

Lentamente abri o portão o vento mais uma vez me tocou, dessa vez fazendo voltar um pouco à realidade que me cercava. Entrei, fechei o portão. Deste ponto em diante os passos já eram automáticos, não mais comandados por mim, subi as escadas, abri a porta, quando cheguei em meu quarto percebi que ninguém me havia encontrado e também ninguém mais me esperava. Era unicamente a solidão que me estendia os braços novamente.

Rapidamente liguei o rádio, estava na hora de parar de ouvir meus pensamentos. A música italiana tocou alta enchendo todo o quarto, ”parole, parole, parole”...


sexta-feira, 31 de outubro de 2008

Obsessão




Afastei o portão, passei sem dar maior atenção à cadela que me fitava com ar de reconhecimento, escancarei a porta que estava apenas encostada e entrei. A família toda estava reunida na sala, espalhados pelo sofá de estampa florida, assistiam alguma coisa que passava na tv. Me olhavam de maneira confusa, mas meus passos firmes me faziam continuar e passar por eles sem me importar com as indagações que vinham.

Me dirigi com pressa para o quarto dele, nada tinha mudado, os móveis continuavam nos mesmos lugares. A cama desarrumada, as roupas jogadas pelo chão, os livros sem ordem empilhados sobre a cadeira, o disco na vitrola persistia em rodar sem tocar nada. Quanto tempo teria passado desde a última vez?

Parada no meio daquele quarto que era um pouco meu também, fiquei olhando aquelas coisinhas todas, a canção dos ventos pendurada na frente da janela produzia um suave som metálico de peças batendo enquanto a cortina dançava longe e me tocava de leve as pernas.

A estante estava ainda ao lado da porta do quarto. A mesma bagunça, tudo junto ao mesmo tempo. Meu olhar passou por cada prateleira, mas apenas uma me chamou maior atenção. Os porta-retratos! Com alegria vi nossas lembranças em fotos, alguns tinham apenas fotos minhas, da minha infância (o que explicava porque os retratos haviam sumido da minha casa), em outras, imagens nossas abraçados, sorrindo felizes, sorri também. Um sorriso que foi desaparecendo ao ver que ali, naquela mesma prateleira, continha fotos de uma mulher que não era eu, uma outra que nunca tinha visto. Fui vendo cada vez mais retratos dela espalhados junto com os meus. Entendia perfeitamente. Senti ódio.

Ele entrou pela porta, não me pediu explicações. Não perguntou o que eu fazia ali mexendo em feridas depois de tanto tempo, talvez porque tanto quanto eu, ele também se encontrava sem voz. Ficamos por algum tempo nos olhando, não sei explicar como que dos olhares fomos para o beijo. Um beijo lento e perfeito. Enquanto me deitava na cama, um porta-retratos caiu de minha mão, mas nada importava. Éramos os únicos seres habitantes do mundo, nos enroscávamos no lençol amarrotado. Desculpe interromper! Uma voz soou alta, não vi de onde veio, mas o beijo havia acabado. O telefone tocou, acordei sobressaltada.

Não queria atender telefone algum, deixei que tocasse. Ansiava por voltar, desejava ardentemente realizar aquilo tudo, abrir a porta, invadir a casa, tomar de volta o que me pertencia, organizar a estante de lembranças, jogar fora as que não eram minhas. Mostrar que ele jamais poderia me esquecer. Dizer simplesmente: Voltei!