quarta-feira, 23 de junho de 2010

Notícias

Queridos amigos, estou novamente na ilha e começo a acreditar que é o meu lugar. Hoje fez um maravilhoso dia, cheirando a alegria e céu azul daqueles sem nuvens, o mar estava de todo muito claro e quentinho.

As novas tecnologias não deram as caras por esses lados, mas até que gosto de fazer as coisas do modo antigo. A noite, a claridade vem da lua ou das velas, quando ambas estão ausentes é preciso acostumar os olhos a escuridão.

O ar da manhã oferece frescor de vida nova, o que me faz sentir a falta de alguma coisa que ainda não identifiquei. Pelo que sei todas minhas malas chegaram, tenho as mãos tudo o que necessito e os pensamentos que cultivei ao longo dos anos. O lixo é retirado de tempos em tempos, conforme as necessidades e os aumentos de temperatura.

Aqui também tem dias tempestuosos e cinzas, nesses dias nada me comporta, escorro com a chuva pelo mar até reencontrar novamente meu caminho. Nunca venho do mar da mesma forma que entrei, volto sempre maior. Depois tudo se acalma novamente e torno a respirar, então vejo minha casinha longe no meio de toda aquela imensidão de ilha, em volta tudo são destroços, mas ela está sempre lá em pé, me esperando voltar. Conforme chego perto, o sol reflete em seu telhado, até que a própria casa torna-se Sol. Pintarei um quadro com essa imagem num dia desses.

Como podem imaginar, este é um lugar distinto dos demais, esporadicamente avisto do farol uma ou outra ilha que às vezes se aproximam conforme as luas, gosto de acreditar na idéia de um arquipélago.

Vou ficando por aqui, lá fora está um entardecer lindo. Pretendo andar um pouco, hoje à tarde percebi um caminho novo ao sul, quero ver quanto consigo conhecer e explorar antes do sol se por. Mandem notícias!

segunda-feira, 26 de abril de 2010

Permissão para voar

De olhos fechados é permitido chegar a qualquer lugar. Era assim que ela se permitia, e permanecia com os olhos bem fechados, as coisas poderiam parar ou caminhar infinitamente mais rápidas que não tinha importância alguma. No ar do quarto pairava um morno cheiro de café fresco, Durante aqueles incalculáveis tempos ela simplesmente era como os fios de lã em uma cesta que nunca poderiam voltar ao novelo, condenados para sempre naquela confusão sem começo ou fim. De dentro do seu labirinto ela podia quase se sentir feliz, em casa talvez.

Lá fora ventava suave a brisa de uma manhã qualquer de primavera, os pássaros cantavam em burburinho, o céu provavelmente estava naquela imensidão azul, as flores dos laranjais perfumando, enfeitando o quadro perfeito que em outros tempos poderia até ser real, mas que naqueles dias não passava de uma imagem perdida na mente de alguém que não sabia sequer o próprio nome e que há muito tempo não limpava sua própria baba.

As horas param, os dias passam e voltam, anos rastejam em segundos eternos de tic-tac tão duros como o martelo de um juiz pedindo atenção. Um grande buraco se abre. Um vácuo cerebral tão dolorido quanto pode ser lateja. Dois olhos reacendem. Um homem de branco no canto do quarto arruma algumas coisas não visíveis, o café já meio velho na bandeja permanece intocado, sabe-se lá por quanto tempo. Os braços amarrados não alcançam nem mesmo seu próprio rosto, quem dirá aquela bandeja metálica, tão fria quanto a morte, quanto a falta de sonhos e a sobra de vida guardada dentro de quatro paredes. A sua volta a realidade de um quarto enlouquecedoramente branco, o vazio destruidor de imagens, mas nada dura.

O espaço de tempo que estivera ali e ali permaneceria já não faziam qualquer diferença... a névoa da loucura fechando novamente sobre seus olhos. Silêncio e sonhos.

quarta-feira, 17 de março de 2010

Flores de aço

Mais uma vez eu estava matando ele, porque não importava quantas décadas passasse, ele sempre acabava voltando. Já havia me despedido das mais diversas formas, em sonhos e com flores. Inúmeras lágrimas haviam caído livremente em meu rosto meio deformado pela dor, dessa vez era eu quem tinha que matá-lo. Doeu-me.

Noite passada eu sonhei que ele voltava. Pele acinzentada e úmida, olhos verdes, sem vida, vi neles raiva incontida. Vinha em passadas largas, descontrolado me procurava em todos os cantos, eu sabia que ele iria me encontrar mais cedo ou mais tarde. Toda a opressão que eu já havia sentido me voltava à garganta sufocando minha coragem, tornando-a murcha até virar um medo devastador. Em suas mãos, duas barras de ferro que eu sabia muito bem, me eram destinadas.

Não sei quanto tempo fiquei escondida, mas foi tempo suficiente para amargar o medo no peito e transformar em uma coragem nunca antes sentida. Sai do esconderijo e parti para o ataque, em minhas mãos também tinham armas. Logo que me viu correu em minha direção, fiz o mesmo. Ele me atacava, eu fazia o mesmo. Primeiro era ferro contra ferro, depois foi a carne de sua cabeça que minha arma encontrou. Era um monstro maior que eu, já não conseguia parar de bater. Desesperada eu gritava e continuava a bater, ele caiu de joelhos e me olhava com olhos ternos, cheios de lembrança. O ferro em minha mão prosseguia batendo, tirando sangue, vida e os sons mais terríveis que eu certamente haveria de ouvir nessa vida.

Acordei com o corpo coberto de suor, minhas mãos geladas e doloridas. O grito na garganta preso a me sufocar, ninguém por perto, nervos em frangalhos. Não dormi o resto da noite, as dobras da coberta guardavam as lembranças dos constantes pesadelos. Pensando friamente sobre o sonho de ontem posso dizer que ainda não sei por que ele quer voltar, mas sei muito bem porque não quero que ele volte.