quarta-feira, 19 de novembro de 2008

Eles

Volta e meia sou invadida pelos meus próprios “eus-monstros”. Eles são feios, maus, rosnam, têm dentes grandes e afiados, se alimentam de mim e nunca estão satisfeitos. Ás vezes eu exalo um certo mau hálito vindo deles.

Quando posso tento os acalmar, assim como quem se aproxima lentamente de um cão raivoso. De vez em quando funciona, se acalmam, outras vezes me devoram um pouco do coração, fígado e estômago.

Eles crescem e se multiplicam de forma desordenada, tenho a impressão que um dia eles tomarão conta de todo o espaço ocupado pelas minhas vísceras. É bem possível! Talvez aí, quando eu estiver completamente vazia e já não tiverem do que se alimentar, eles finalmente me deixem em paz – eu e minha carcaça - ou quem sabe procurem abrigo em outro alguém, ou ainda, simplesmente se aquietem e sejam meus companheiros de viagem até o fim. Não sei!

Quiçá um dia eu comece a comê-los! Também não sei.

segunda-feira, 10 de novembro de 2008

O palco

O palco era grande, atravancado de porcarias que iam do chão até o teto. Mercadorias desordenadamente colocadas em pilhas, fileiras, unidades sobre unidades e ao lado de outras tantas unidades. Placas amarelas de preço anunciavam imperdíveis promoções, sabão em pó, em pedra, sabonete, arroz, feijão, banana, produtos de todos os gêneros armazenados no mesmo local. Corredores apertados, mau iluminado, cheirando a urina de rato, frutas passadas e suor humano. As moscas pousando sem pressa sobre lingüiças, bacon e torresmo expostos em desmazelo sobre o balcão do açougue. Características comuns de mercados populares. “Aproveite a oferta freguesia”, anunciava da caixa de som uma voz meio rouca e cansada, entre um pagodinho e outro.

De que serve o palco senão para atores representarem seus papeis? Os atores eram homens, mulheres e crianças, em seus carrinhos até mesmo os nenéns não perdiam a oportunidade de participar do espetáculo fazendo alguma algazarra (às vezes engraçadinhas, às vezes irritantes). Papeis e intenções se repetiam diariamente, as falas se restringiam a “obrigada”, “por favor”, “licença”, raramente improvisações eram necessárias, participações rápidas. A menina do caixa sempre sorridente com seu avental azul fazia acenos com a cabeça “Obrigada, volte sempre

Todo dia, dia de interpretação, cortinas abertas de segunda a segunda. Um palco repleto de novos e velhos talentos, porém não havia tempo nem espaço para apenas assistir, muito menos ensaiar, a vida pulsavam em cada canto, até mesmo o ar ali, possuía uma densidade diferente. Todos sem exceção, intérpretes de um palco real, de uma vida que meramente acontecia.

terça-feira, 4 de novembro de 2008

Parole...

Desci do carro e a primeira onda de vento gelado me invadiu eriçando meus pêlos do braço. Uma noite silenciosa demais para o meu espírito que gritava, mas mesmo assim uma bonita noite esbranquiçada.

Respirei fundo e comecei a andar, mas tão devagar que quem me olhasse, mesmo de longe, veria que eu não queria chegar ao lugar de objetivo. E não queria mesmo, como não queria...

Minha alma ansiava por diversão, por algo que a fizesse esquecer ao menos por aquela noite tudo o que a fazia sofrer.

Andava sem me importar com o horário, sem me importar por estar sozinha, queria ser encontrada, para cada carro que passava eu olhava esperando encontrar algum rosto amigo. O caminho parecia curto demais.

O vento continuava a soprar, eu cada vez me afundando mais em pensamentos, o desejo aumentando mais e mais, agora misturado com um pouco do desespero ao constatar que faltavam poucos metros e ninguém ainda tinha me encontrado. Nenhum amigo para dizer: “que bom te encontrar, estou precisando conversar, talvez somente um pouco de vinho ou quem sabe querendo um simples abraço”.

Os amigos de verdade estavam há certo tempo escassos. Fechada em minha concha poucos me conheciam mesmo, tinha virado algum tipo de profundeza. Os passos agora eram ainda mais vagarosos e pesados, a esperança de ser encontrada por alguém quase não deixava mais vestígios.

Lentamente abri o portão o vento mais uma vez me tocou, dessa vez fazendo voltar um pouco à realidade que me cercava. Entrei, fechei o portão. Deste ponto em diante os passos já eram automáticos, não mais comandados por mim, subi as escadas, abri a porta, quando cheguei em meu quarto percebi que ninguém me havia encontrado e também ninguém mais me esperava. Era unicamente a solidão que me estendia os braços novamente.

Rapidamente liguei o rádio, estava na hora de parar de ouvir meus pensamentos. A música italiana tocou alta enchendo todo o quarto, ”parole, parole, parole”...